Ataque à ciclista expõe assédio recorrente contra mulheres
Importunada sexualmente e agredida enquanto pedalava, quando chegou a ser derrubada de sua bicicleta, a estudante de Direito paranaense Andressa Lustosa luta para que o seu caso não seja esquecido.
A jovem, de 25 anos, faz tratamento psicológico para superar o trauma, namora o homem que a socorreu e espera ver os envolvidos condenados. Ao agredir fisicamente uma mulher, o criminoso acerta em cheio a sua integridade mental. Segundo especialistas, a consequência é o estresse pós-traumático, pois a vítima revive repetidamente as dolorosas lembranças.
A chocante agressão aconteceu em setembro de 2021, quando Andressa pedalava numa avenida tranquila na cidade de Palmas, no interior do Paraná. De repente, um carro saiu de sua rota e colou em Andressa, enquanto o passageiro passou a mão nas nádegas da ciclista, que perdeu o equilíbrio e caiu, colocando-se em risco no meio da via.
Andressa conseguiu as câmeras de segurança e pediu ajuda nas redes sociais para identificar os agressores. O flagrante de importunação sexual que sofreu viralizou na internet.
Ela perdeu a conta de quantas entrevistas gravou para diversos programas de TV, entre eles os de maior audiência como Fantástico e Encontro com Fátima Bernardes, da Rede Globo. As cenas foram compartilhadas no mundo inteiro milhares de vezes e chocaram pela violência.
Para Andressa, foi o início de um pesadelo. O corpo se recuperou dos hematomas e machucados, mas é difícil superar o golpe na alma feminina. Ela precisou começar um tratamento psicológico e tomar remédio controlado para ansiedade.
"Eu fiquei muito mal. Parei de trabalhar, fiquei com medo. Eu só ficava em casa, não andava mais de bicicleta, fiquei alguns meses trancafiada em casa por medo mesmo", lembra.
Como se não bastasse, logo depois Andressa teve a sua bike furtada em casa. Tudo parecia desencorajá-la a pedalar.
Rede de apoio online
Nas redes sociais, quase 100 mil pessoas passaram a seguir Andressa. Uma verdadeira rede de apoio digital. De acordo com a médica e escritora Cínthya Verri, de cada 100 indivíduos traumatizados, entre 1 e 5 jamais conseguem superar as memórias que os atormentam. Ela assistiu à matéria que editei sobre o caso para o SBT Brasil e se identificou, como a maioria das mulheres que já sofreram algum tipo de violência. No caso dela, aos 12 anos, quando caminhava para a aula. Segundo a ONU, Organização das Nações Unidas, ao longo da vida 1 em cada 3 mulheres no mundo – cerca de 736 milhões de pessoas – é vítima de violência física ou sexual.
"É chocante ver Andressa andando em sua bicicleta e sendo atacada como eu fui, tendo também sua vida ameaçada. Na entrevista, ela conta como levou algum tempo para compreender o que acontecia, naquele congelamento que eu também reconheço com dolorosa empatia", conta Cínthya.
Para Andressa, o apoio inesperado veio do homem que a socorreu, Cristian Gotardo, 24 anos, engenheiro eletricista, que aparece nas imagens enquanto praticava corrida. Os dois não se conheciam.
Andressa e Cristian
"Foi tudo muito rápido, a única coisa que eu me preocupava era ver se ela tinha batido a cabeça. Pelo vídeo, a gente percebe que poderia ter acontecido uma fatalidade", diz Cristian.
Ele revela que sentiu remorso porque não ficou com Andressa depois que outras pessoas chegaram para socorrê-la. Um dia, mandou mensagem pelas redes, eles passaram a conversar e depois começaram a namorar. O amor de Cristian foi um presente em meio ao caos.
Violência é naturalizada
Na época presidente da OAB, Ordem dos Advogados do Brasil, de Palmas, Dr. Eduardo Tobera Filho acompanhou o caso. Ele acredita que se não fossem as imagens das câmeras de segurança, não teria tanta repercussão.
"Infelizmente, em Palmas e região, existem diversos registros diários de casos semelhantes contra ciclistas e esportistas. As mulheres não se sentem mais confortáveis em praticar esportes ao ar livre, sozinhas, em virtude de um possível assédio que poderá ocorrer. E não só casos de assédio, como de estupro e outros crimes contra as mulheres", afirma.
Para Tassia Furtado, responsável pela comunicação e engajamento da rede Bike Anjo, mulheres ciclistas nunca sabem se o motorista que diminui a velocidade está sendo educado no trânsito ou simplesmente quer olhar para outra coisa: "Eu sei que em todo pedal vou escutar algo referente ao meu corpo, mas teve uma vez em que me perguntei quanto tempo demora pra isso acontecer. Bom, não cheguei nem na esquina".
Em uma sociedade onde a mulher é tratada como objeto, ela é também desumanizada, explica Lize Nascimento. Segundo a psicanalista, tudo o que se refere ao feminino é visto como menor, inferior ou frágil, e passa a naturalizar a violência, como é o caso desse episódio.
"Esse homem que atacou a Andressa a vê como um objeto que ele pode dispor como e quando quiser, e não obrigatoriamente há uma patologia envolvida, mas uma cultura de estupro que permeia toda a nossa sociedade", afirma a psicanalista.
Com a ajuda das imagens, a polícia de Palmas identificou o motorista que facilitou a agressão ao aproximar o carro e o passageiro que passou a mão nas nádegas de Andressa e a derrubou. Eles foram indiciados por importunação sexual e lesão corporal. Ficaram pouco tempo atrás das grades, foram soltos mediante o uso de tornozeleira eletrônica. A audiência de instrução e julgamento foi marcada para o início de maio.
"Foi uma coisa ruim, mas serviu para tentar ajudar outras mulheres a denunciar esse tipo de crime. A nossa sociedade é muito machista ainda, e é necessário o debate para que ela consiga evoluir e nós, mulheres, consigamos sair nas ruas sem medo", acredita Andressa.
Enquanto trava sua luta diária de superação do trauma, ela pensa em escrever o TCC, trabalho de conclusão do curso de Direito, sobre violência contra a mulher. Voltou a pedalar menos do que gostaria, mas é um (re)começo. Para a jovem, e para todas nós que pedalamos nas cidades brasileiras, a punição exemplar dos agressores é uma esperança de que possamos ser respeitadas e que a importunação sexual, quem sabe um dia, deixe de existir.
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