Bicicletas em prol do coletivo

Ela e sua bike, sua bike e ela. Sempre juntas. E o que é melhor, a favor da comunidade. Professora de inglês em escola pública em Manaus, no Amazonas, Mariléia Seixas se reinventou em cima de uma bicicleta. Construiu uma rede invejável de amigos e conhecidos que se espalha por todos os cantos do Brasil através de ONGs e associações. E ainda decidiu usar todo esse conhecimento para transformar vidas, além da sua.
Mari tem paixão por bikes e isso começou muito cedo, aos sete, oito anos, entre as ladeiras e tombos que levou no bairro Petrópolis, entre os amigos da vizinhança, que ora brincavam de bicicleta e patins ou manja e pega, uma espécie de esconde-esconde, ora se reuniam para ouvir alguém tocando violão, cantando Legião Urbana, ou alguém contando histórias de terror inspiradas em um casarão abandonado ali perto. “O Bike Anjo ainda não existia, aprendi sozinha. Eu não tinha bicicleta naquela época, minha família não podia me comprar uma, então emprestava dos amigos, em geral eram bikes sem freios. E eu me soltava ladeira abaixo, sem medo. Os tombos aconteciam, é claro. Tenho marcas no corpo até hoje. Aquele vento na cara... Eu me sentia voando. Era uma liberdade só”, lembra rindo, como se voltasse àquela época.

Mari em Manaus
A sua primeira bicicleta ela comprou há uns oito anos. E por um motivo bastante prático, para não dizer insólito. Ela morava a algumas quadras do mercado. Não era incomum, quase chegando em casa, de volta das compras no tal mercado, se lembrar de que havia esquecido duas ou três coisas. Essa história faz mais sentido ainda se se levar em conta o fato de que ela sempre morou em Manaus, nos trópicos, 40 graus todos os dias em boa parte do ano. Voltar ao mercado para comprar o que esqueceu debaixo daquele calor absurdo... E em algum momento ela teve a ideia, uma daquelas ideias óbvias: ao invés de ir caminhando, por que não usar uma bicicleta e fazer esse trajeto mais rápido? Claro! Comprou uma Caloi toda preta, que tem até hoje e não a largou mais.
Do mercado, passou a ir trabalhar sobre duas rodas. E economizou tempo e dinheiro. O transporte público demorava mais de meia hora para chegar ao ponto, mais o trajeto em si. Não fazia sentido. Com a bike, em 15 minutos já está na escola. “Tudo muito mais prático. Não tem comparação. Bicicleta significa liberdade. Eu vou para todos os lugares quando quero, não espero por ninguém, sem congestionamentos. Se estou um pouco triste, basta começar a pedalar que a alegria volta rapidinho. Melhor do que terapia. E ainda faço exercícios no caminho, cuido da minha saúde”.

Com as crianças beneficiadas pelo projeto Pedala Maninho
Não demorou nada para ela começar a usar sua Caloi para explorar a cidade nos fins de semana, meio sem destino. Foi pedalando até a conhecida Ponte do Bilhão, na verdade Ponte do Rio Negro, inaugurada em 2011 com quase quatro quilômetros de extensão, que liga Manaus ao município de Iranduba. E foi durante esses passeios que Mari se encantou pelo centro histórico, descobriu sua arquitetura, o Mercado Municipal, o Teatro Amazonas, a igreja matriz, o porto. “Eu amo Manaus. Nos fins de semana me perdia por ali imaginando a cidade na fase áurea do ciclo da borracha, as pessoas que passaram por aquelas ruas, as suas roupas, como viviam, o que conversavam. No final do passeio aproveitava para ver o pôr do sol no porto. Muito lindo”, conta.

Com a turma do pedal noturno em Manaus

Grafite do Pedala Maninho na escola em que trabalha

Ação do Bike Anjo em Manaus

Com os amigos do pedal noturno

De camiseta laranja, em uma ação de sustentabilidade em Manaus

Com os alunos da Escola Municipal Antisthenes de Oliveira Pinto, no projeto Pedalando no Conhecimento

Professores e monitores acompanham os alunos em passeio de bike para desvendar a cidade

Em Buenos Aires, e de bicicleta, claro!

Na Filadélfia, onde estudou
Aquilo tudo não podia ficar só com ela. Quando estudou na Filadélfia, nos Estados Unidos, cidade riquíssima em museus e monumentos que contam a história do país, Mari conheceu grupos que desvendavam a cidade pedalando. Pois ela faria o mesmo. Logo que voltou ao Brasil esboçou um projeto para a Escola Municipal Antisthenes de Oliveira Pinto, poeta amazonense, onde dá aulas. Como não conseguiria levar seus quase 300 alunos, ela e o professor de geografia Leoci Queirós, com quem conversou sobre a ideia, resolveram criar uma gincana com todas as classes para que os melhores trabalhos sobre pontos turísticos da cidade fossem premiados. E os prêmios eram conhecer os lugares pessoalmente... pedalando. E para não deixar ninguém de fora, que nem sempre os alunos possuem uma bicicleta, Mari e Leoci contaram com o precioso apoio da TemBici, que emprestou mais de 50 bikes para os alunos, os professores e os monitores envolvidos. Foi um sucesso!
A paixão pelas bicicletas a levou a se envolver com o Pedala Manaus, Divas do Pedal, Bike Anjo e também com a UCB (União dos Ciclistas do Brasil), entre outras associações. Passou a participar de pedais noturnos, de passeios nos fins de semana, a se engajar em ações sociais e, agora, com a proximidade das eleições, em ações com agendas políticas. “A UCB tem se reunido com várias entidades para elaborar uma carta compromisso e levar esse documento para candidatos aqui em Manaus. São propostas para melhorar a mobilidade sustentável na cidade”.

Durante a pandemia, no pedal noturno

Em Vitória, durante um encontro do Bike Anjo
No projeto Pedala Manaus nasceu o Pedala Maninho (que é assim que os manauaras chamam as crianças, maninho, maninha), em que ela e os seus companheiros, em parceria com o Bike Anjo, não só as incentivam a andar de bike através de palestras, por exemplo, mas também recolhem bicicletas usadas, consertam de graça cada uma delas e depois as devolvem para crianças e adolescentes de comunidades. Um trabalho lindo impulsionado pelo amor que ela tem por esses deliciosos veículos de duas rodas. Essa iniciativa foi selecionada para participar da conferência anual Velo-City, na Holanda, para onde ela foi em 2018.
O Pedala Manaus ainda promove uma atividade junto aos motoristas e funcionários das empresas de ônibus da cidade chamada Convivência Legal. A ideia é fazer com que principalmente os motoristas sintam o que os ciclistas sentem quando os ônibus tiram uma fina deles. Quem nunca? “A gente faz palestras e depois promove uma simulação: cada motorista pedala em uma bike presa em um rolo. Em seguida um ônibus passa bem perto dele, como se fosse tirar uma fina. E aí eles conseguem compreender o que a gente passa todos os dias nas ruas. A ideia é promover o respeito”, explica.

Chegando à escola em que trabalha
Hoje em dia, mesmo com a pandemia, Mari (no insta @pedale.como.uma.amazona) não deixa de andar de bicicleta, coisa de 10 quilômetros por dia em média, contando com os passeios noturnos que costuma fazer. Um carro? “Não vou comprar. Até desisti de tirar minha carteira de motorista. Não troco nenhum carro que polui por minha bicicleta sustentável. Não me interessa. A bicicleta me ensinou a pensar no bem do planeta. É como contribuo para uma vida melhor para todos”. Alguém aí discorda?

Em frente ao Teatro Amazonas, principal cartão-postal da cidade
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